Amanhã, na batalha, pensa em mim (Javier Marías, 1994), e que caia sem gume a tua espada. Desespera e morre! É um trecho da peça Ricardo III, de Shakespeare, e que dá título ao primeiro livro publicado por um autor não latino-americano que venceu o Prêmio Rómulo Gallegos. Ele foi traduzido para o português por Eduardo Brandão, sendo publicado no Brasil pela Editora Martins Fontes na segunda metade dos anos 1990. Javier Marías dá voz ao seu Narrador, um roteirista de programas de televisão, para que ele conte por meio de sua óptica e seus pensamentos a morte de uma personagem que ele conhecia muito pouco: Marta Téllez. Apesar do pouco conhecimento, quando ela morreu ele estava no aparatamento dela. Ninguém da família de Marta, além de seu filho, conhecia o Narrador e, na sequência de sua morte, alguns fatos antecedentes e muitos outros que aconteceram depois são contados.

O texto é desenvolvido em parágrafos longos. O romance anda na linha tênue entre o ponto ótimo e o exaustivo. São pensamentos. Porém, não sei por qual técnica, o autor consegue não ultrapassar a linha para o lado ruim, tornando o texto impecavelmente descritivo sem cair nos excessos a que ele (propositalmente) se circunda. Outra ferramenta utilizada pelo autor são as repetições. Muitas repetições. A repetição é uma forma de fixação de conteúdo: pode ser que ela tenha este propósito neste livro. É muito útil e faz muito sentido mesmo quando o autor repete as mesmas frases integralmente em mais de uma ocasião. Este tipo de repetição também se aplica ao título. A frase Amanhã, na batalha, pensa em mim, sozinha ou acompanhada de outros trechos de sua peça de origem ou até mesmo de outras obras, aparece ao longo do livro. Mas, a cada aparição, ela está contextualizada, se encaixando perfeitamente à história. Nada é gratuito.

O suspense do livro é leve, mas suscita perguntas. O próprio narrador se faz muitas perguntas e o romance em si nos desenvolve outras. Destas perguntas, quase todas são respondidas. Um elemento surpresa, inclusive, é adicionado em algumas respostas: a própria surpresa. Coisas óbvias e, por isso, descartadas, são confirmadas. O livro vai avançando à medida que suas e nossas perguntas são respondidas. O questionador quer respostas, sendo elas direcionadas ou não às suas perguntas. Desta forma, o autor responde coisas que foram perguntadas e coisas que não foram perguntadas, saciando o leitor de respostas e, assim, disfarçando as (poucas) que foram feitas e não foram respondidas. São as perguntas sem respostas que deixam o texto vivo em nosso imaginário após finda sua leitura. A dúvida é um precioso elemento literário.

O livro é excepcional. Eu comecei sua leitura sabendo muito pouco do seu enredo. Não acredito que o contrário teria atrapalhado minha experiência, embora pretendo repetir isto com outros livros. O objetivo deste post era comentar alguns aspectos do romance tentando informar o mínimo possível sobre o que acontece na obra para que os futuros leitores possam ter experiências semelhantes à minha. Recomendo o livro para todos os que gostam do movimento pós-modernista e para todos aqueles que gostam de boas histórias. O texto é leve, muito bem escrito, perfeitamente estruturado para cumprir seu propósito. É muito informativo, o autor é um erudito, mas seu texto não chega a ser enciclopédico. O ritmo é lento; contudo, o suspense criado por sua história não o torna cansativo. Aqui as coisas são bem diferentes dos exemplares habituais do pós-modernismo. Aqui as coisas são diferentes… ¡Hasta luego!


Javier Marías nasceu em Madri, em 1951. Membro da Academia Real Espanhola, estudou Filosofia e Letras na Universidad Complutense de Madrid e foi professor de Literatura Espanhola e Teoria da Tradução na University of Oxford (1983-1985), no Wellesley College de Massachusetts (1984) e na Universidad Complutense de Madrid (1986-1990). É escritor e tradutor. Já publicou 15 romances e 3 livros de contos. Destes, 12 foram traduzidos e publicados no Brasil pelas editoras Martins Fontes e Companhia das Letras. Seu livro mais recente, Berta Isla (2017) será publicado pela Companhia das Letras em 19 fev. 2020, com tradução de Eduardo Brandão.

Na capa desta post está o fantasma da Rainha Ana (interpretado por Phoebe Fox na série The Hollow Crown) que assombra Ricardo III, seu esposo e mandante de sua morte, uma noite antes de sua derradeira batalha, dizendo uma das frases célebres da peça: Amanhã, na batalha, pensa em mim.