O risco do bordado (Autran Dourado, 1970) é o livro das memórias de seu protagonista João, natural da cidade de Duas Pontes, uma espécie de sumarização do interior de Minas Gerais. De narrativa não-linear, organizada em blocos verticais de estruturas abertas, é um romance, mas pode ser um “romance de formação”, um “romance de família”, ou até mesmo uma crônica de cidade. Tudo depende da parte da narrativa em que se encontra o leitor. E essa fragmentação é tão correta e nos momentos corretos que, olhando o todo de longe, ele até poderia considerá-lo um livro de contos. A fragmentação a que me refiro aqui é a “tipográfica”, aquela que divide o romance em sete blocos narrativos com seus próprios mote-e-glosa. Eles têm autonomia suficiente para se sobressaltarem ao texto completo ainda que insuficiente para desunificar o bordado do todo.

Uma outra divisão, de outro quinhão, foi estabelecida por seu autor, porém não no livro em questão e, sim, em seu ars poetica. Nele, o autor agrupa os sete blocos de seu romance em três grupos distintos. O foco de cada um deles está, respectivamente, em alguns aspectos da infância-adolescência de João, em algumas histórias de sua família, e na lenda de sua cidade que faz referência a um bandido famoso. Os três grupos são equânimes. Contudo, o segundo é o que se dispõe da maior carga dramática do livro todo, sem ele o livro existira, seria um excelente livro, mas não seria tão grande quanto é. A importância destas seções ao livro está em seu cerne, naquilo que permanece depois do fim, na estrutura que o tecido morto dá à madeira. O cerne dos três blocos que a compõe está refletido nas demais seções do romance e revela direta ou indiretamente alguns dos segredos da família de João que, como outras que conheço, incluindo a minha, está repleta de assuntos intocáveis que ninguém disse que não se deve tocá-los, de proibições virtuais como as de se mencionar determinada pessoa ou determinado evento, e todos vão seguindo a regra à risca, hereditariamente.

O nome de um tio, de um filho, de uma doença e de outras coisas trágicas que os acometeram vão sendo evitados até que assumam forçadamente a máscara do esquecimento. Nos blocos desta seção estão a maioria das coisas que se quereriam esquecidas. Vovô Tomé, em Assunto de família, narra ao seu neto João um acontecimento trágico do início de sua vida adulta, onde, inclusive, diz a ele, “carece muito de esquecer […]; eu por exemplo só quero é não lembrar”; tia Margarida e João, em O salto do touro, combinam silenciosamente de se esquecerem de algo que não aconteceu entre os dois; e foi em As voltas do filho pródigo, onde tio Zózimo está e não está, que João aprendeu e ingressou nos silêncios de sua família. A história do bloco de tio Zózimo é um verdadeiro retrato de como a depressão foi e ainda é vista por quem vive próximo de quem por causa dela sofre, a presença da ausência, os altos e baixos, está tudo ali, exceto o termo, exceto alguém que explicasse ao menino João o que verdadeiramente se passa. João descobre as coisas por conta própria, aprende a se calar por conta própria.

O silêncio de João não vingou e é por isso que temos um livro. Para que “o mundo de sua infância não ficasse soterrado”, ele “um dia gostaria de ser capaz de escrever todas as histórias de sua família”, incluindo os casos que ele viveu, apenas presenciou e os que ouviu contar. E escreveu. O risco do bordado é narrado em primeira pessoa pelo próprio João, que desde criança tinha aspirações a escritor, ou em terceira pessoa, sob seu ponto de vista, sem revelar, nos seis primeiros blocos, em qual fase de sua vida eles foram escritos. Esta dúvida é muito bem-vinda ao funcionamento do romance, principalmente se somada ao trecho de sua epígrafe, “quando eu era mais jovem, podia lembrar-me de qualquer coisa, tivesse ou não acontecido; mas agora as minhas faculdades estão decaindo e em breve só serei capaz de me lembrar das coisas que nunca aconteceram” (Autobiografia de Mark Twain).

No último bloco, porém, está claro que o João presente ali é o adulto, aquele que regressou à sua cidade natal por volta de vinte anos depois de sua partida para longe. Este João tem um memorial afetivo, segundo as palavras de Luiz Ruffato (El País, 2014), embaixo do braço. Memorial afetivo de alguém que um dia descobriu uma “verdade tão corriqueira” que “mesmo que não se note, as coisas mudam” e que escrever é uma forma de resguardar as “vivências, sensações e lembranças”, protegendo-as de serem “deglutidas pela fome do tempo”. João escreveu as histórias de sua família, tal como um dia desejou, emitindo e omitindo as coisas, aguçando a imaginação do leitor para descobrir o que não foi revelado na linha, a fazer uma análise minuciosa das entrelinhas e, fazendo com que ele, assim como tia Margarida, que dava a impressão de ler sempre o mesmo livro, possa viver muito bem o resto de sua vida lendo, de fato, o mesmo livro, sem correr o risco deste se esgotar. Afinal, quando é que se esgota uma obra? Nunca. Quando é que se esgota um livro? As histórias de O risco do bordado são perenes.

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Waldomiro Freitas Autran Dourado (Patos de Minas, 1926 – Rio de Janeiro, 2012) foi um artífice da palavra, adepto da disciplina flaubertiana, que construiu produtos finais tão eficazes que o conjunto de sua obra foi reconhecido pelos principais prêmios da literatura de língua portuguesa (Camões, 2000) e da literatura brasileira (Machado de Assis, 2008). Além de prosa de ficção, também escreveu memórias e ensaios, como a autocrítica literária Uma poética de romance: matéria de carpintaria (1976), seu ars poetica, onde discorre sobre sua produção até o momento, com destaque para o romance O risco do bordado (1970).