Cidade do México, Tenoch e Julio. Depois, Tenoch, Julio e Luisa. Os três são protagonistas de Y tu mamá también (2001), o segundo longa-metragem em língua espanhola da carreira de Alfonso Cuarón, um realizador fundamental do cinema contemporâneo (dois óscares de melhor diretor na estante). No começo do filme, aos amigos Tenoch (Diego Luna) e Julio (Gael García Bernal) estão se despedindo de suas namoradas, de partida de férias para a Europa. O período letivo do equivalente ao ensino médio deles se acabou. Neste intervalo, até o ingresso ao ensino superior, os dois amigos perambulam pela cidade. Julio vive com sua mãe e irmã, criado sem pai, com a força de trabalho de sua mãe que, sozinha, fez acontecer. Ela, por sinal, apesar de muito importante para a concepção que se faz de Julio, não aparece em cena. A casa é simples, a vida é simples. Sem luxo, com muita dignidade. Tenoch, ao contrário, nasceu em berço de ouro, vive em uma mansão, resultado da vida política de seu pai, “pessoa importante”, ligada inclusive ao presidente da república. Tenoch é um privilegiado. Agora, quando o tópico é dignidade, pode se ouvir aqui e ali um escândalo de corrupção envolvendo o nome de sua família.

A diferença de classe entre os dois não parece ser decisiva para a amizade que eles mantêm. Um frequenta a casa do outro familiarmente, ainda que, como relata o narrador do filme, Julio, quando vai ao banheiro da mansão, tome excesso de cuidado com a limpeza, e, Tenoch, na casa do amigo, levante a tampa da privada com os pés. Até o momento em que esta amizade se desfaz, já ficou bem claro que não se conta a história de um sem contar a história do outro. Eles são inseparáveis.

Sempre juntos, Tenoch e Julio vão a uma festa de bodas da família de Tenoch, festa importante, com a presença até do presidente. A família de Tenoch é importante, como eu já havia mencionado. Porém, não são os altos cargos políticos presentes nesta festa os fundamentais para esta narrativa cinematográfica. A peça fundamental que faltava para o correr da história era Luisa (Maribel Verdú), esposa de um primo de Tenoch. Luisa e Jano, seu marido, pelo que me recordo, não moram no México. Ela é espanhola. Jano é escritor. Eles vieram de viagem, Jano tinha alguns eventos literários. E as bodas, também. Na festa, Tenoch e Julio tentam impressionar Luisa, dois adolescentes à sombra de uma mulher bonita, madura e inacessível. O viço da juventude. De conversa em conversa, eles mencionam uma expedição imaginária que farão a uma praia inventada: “A boca do céu”. Convidam Luisa para irem com eles.

Se primeiro tínhamos a diferença de classes, no contato entre os três temos a diferença geracional. Tenoch e Julio vivem uma fase de transição na vida, fase que Luisa já ultrapassou. Ela conheceu Jano em uma viagem de compromissos dele pela Europa. Tenoch também quer ser escritor. Julio quer ser biólogo. Luisa já caminhou bastante, embora pareça que ainda não chegou onde gostaria. A boca do céu não parecia uma má ideia de destino para suas caminhadas. Após a festa de bodas, o marido de Luisa faz uma viagem, ela fica. De onde está, o marido liga para ela confessando uma traição. Ela fica atônita. Em decorrência, decide ligar para Tenoch perguntando se a expedição à praia ainda está de pé. A praia terá que se tornar real. Tenoch e Julio buscam informações de uma praia que possa ser a que eles inventaram. Os três saem em viagem.

Y tu mamá también, escrito em parceria pelo diretor Alfonso com seu irmão Carlos Cuarón, é um filme de muitas descobertas. A princípio, durante o primeiro ato, entre as festinhas de jovens, encontros no clube e na mansão de Tenoch, até a festa de bodas, o que parece é que será um filme bem ao estilo de Dazed and confused (1993) ou de Everbody wants some (2016), filmes de Richard Linklater que trata com ares de comédia e leveza a fase de transição entre o final da adolescência e o início da juventude, recortando o período de transição escolar que vivem Tenoch e Julio. Mas não é bem isso. É um filme, sim, de amadurecimento, o coming-of-age dos estadunidenses. Durante a longa viagem até à Boca do Céu, Tenoch e Julio, com o auxílio de Luisa, vão amadurecendo progressivamente. E é na viagem que o filme parece se enquadrar em outro gênero, o “filme de viagem”, aproveitando outro termo dos estadunidenses, road-movie. De fato, em boa parte de sua extensão é isto o que ele. Muitas das coisas que ele é além disto se tornam parte integral de sua história durante a viagem. Na busca de um local que eles ainda não sabem se existe, os personagens acabam se encontrando a si mesmos.

Amadurecimento e viagem são se fundindo ao olhar crítico de Cuarón, que abre janelas na narrativa. As janelas a que me refiro são recursos empregados de forma a incrementar a história, sem serem obviamente fundamentais para o seu desenrolar. A primeira delas é o narrador (Daniel Giménez Cacho). O narrador é a janela de referência. Quando a cena congela e sua voz aparece, acontece um estranhamento, algo incomum, como se fosse uma intromissão. Depois, à medida que sua importância narrativa vai se tornando mais e mais crucial, ela passa a ser o nosso ponto de referência em três pontos: para se entender o que está acontecendo no presente, quais fatos do passado foram essenciais para o desencadeamento daquela cena e o que acontecerá fora do tempo narrativo do filme. O narrador preenche os silêncios e fornece as informações que, em sua ausência, permaneceriam como lacunas. Curiosamente, em Roma (2018), o filme mais recente de Cuarón, também em espanhol, são os silêncios que ditam as regras. É como se fosse uma reforma mais rígida da forma que ele utiliza em Y tu mamá también. Agora cabe um lugar comum: os silêncios de Roma são estridentes. Em Y tu mamá también também temos gritos.

O que grita em Y tu mamá también é o contraste visual, outra janela narrativa. Enquanto viajam para a praia, os três amigos passam por cenas fundamentais da cultura mexicana, coisas que da distância em que me encontro (outra país, outra cultura), consigo reconhecer, que Luisa, da distância em que se encontra (espanhola), consegue reconhecer, mas que Tenoch e Julio não. Tenoch não sabia que não conhecia o povoado de onde veio sua babá até passar por ele. E não fala sobre isso com ninguém. Aproveitando a mesma intervenção comparativa, o mesmo contraste que acontece aqui, acontece em Roma, diferentes entre um e outro, porque no último, está tudo misturado, e aqui parece que o mistério foi decantado, são só janelas, quando lá o contraste está na vida doméstica. As janelas de contraste, contudo, tem o seu valor. São só janelas, entretanto, são elas que permitem a visão de um mundo onde se pode ou não adentrar. Janelas dentro de janelas. A composição deste filme está baseada em suas janelas, como as que abrem o narrador ou os contrastes acima comentados, também de outras janelas de natureza diferente, janelas que não aparecem durante tempo suficiente para virarem um tópico nesta discussão, mas que são essenciais para transformar um corredor escuro em um belíssimo filme. Um filme que é um coming-of-age, um road-movie, e que é, principalmente, um filme de janelas, e não, nós não temos um termo estadunidense para isto. O que Alfonso Cuarón mostra de dentro e fora das janelas do carro, das janelas de quartos de hotel e das janelas da alma é o que temos melhor quando o assunto é cinema.

Luisa, Tenoch e Julio. Os três amigos, depois de uma viagem onde aventuram-se entre si mesmos, descobrem-se e se redescobrem, brigam e amam, chegam ao paraíso: uma praia magnífica, parece até coisa de sonho. O nome da praia, deixo como bônus para vocês que forem assistir ao filme. Vemos Luisa, através de uma janela, olhar por outra janela, abrir a porta, sair e decidir ficar. Ela tem os seus motivos. Tenoch e Julio, vislumbram-se e voltam, mas não voltam os mesmos. O amadurecimento dos dois, durante a viagem, estava só começando. Muita coisa muda para um e para o outro. Por tudo o que acontece na viagem e no local onde chegam, a amizade dos dois não é mais a mesma. Ela poderia ter se tornado até mais forte, mas algo extrínseco aos acontecimentos do filme faz com que ela se acabe. Na minha concepção, a distância social entre ambos é o que gera a distância física. No final, passado algum tempo após a viagem, os dois se reencontram, como diz o narrador, pela última vez. Tomam um café juntos, conversam. E só. Acabou. A interpretação está solta ali.

Antes, no pré-final, os três estão em um bar da praia, dançam ao som de Si no te hubieras ido, a canção mexicana conhecida no Brasil em versão de Bruno & Marrone. Lá, além de dançar, eles bebem e conversam. Dão risadas das brigas por ciúmes que tiveram no meio da viagem. Julio tinha dito que dormiu com a namorada de Tenoch. Tenoch, depois, por revanche, diz que fez a mesma coisa. Mas, aqui, no pré-final, já reconciliados, eles dão risada de tudo, até o momento que vão relembrando o que disseram ter feito, quando Julio diz a Tenoch, “e sua mãe também”, frase que dá título ao filme e anula tudo o que aconteceu a partir de um fato que não aconteceu. É sutil. Parece ser só uma frase solta. Mas ela concentra um filme inteiro. Ninguém dormiu com a namorada de ninguém. A não ser eles mesmos com suas próprias namoradas. Eram mentiras de momentos de raiva. As descobertas do filme estão também na descoberta das coisas que não aconteceram. A chave é esta. Era um filme que se acabou. Não tem outro. Estava tudo ali. O que já vivemos quando estávamos na mesma fase de transição em que estavam Tenoch e Julio. A fase de transição deles passou.