Uma dívida. Os exemplares de Feliz ano novo (1975), um dos principais livros de contos de Rubem Fonseca, foram recolhidos pouco tempo após sua publicação. A censura proibiu. Um atentado à moral e aos bons costumes. Algo realmente muito ofensivo, os miseráveis sem dentes estavam vendendo muito bem. A dívida foi estabelecida. O pagamento: dez contos mais extensos e ainda mais imorais que os anteriores. Nasce assim O cobrador, o livro, publicado originalmente em 1979 pela Editora Nova Fronteira, a mesma que agora o relança, em oitava edição, apresentando um novo projeto gráfico e prometendo reeditar nele a obra completa do autor, falecido há dois anos, quando já estava com a maioria dos seus livros fora de circulação. A censura não é a única a restringir.

O livro. (Os numerais entre parêntesis se referem a ordem de aparição dos contos na edição vigente). O cobrador (I) é o conto de abertura. As portas não se abrem, são arrombadas. Um narrador meio poeta/ meio psicopata sai pelas ruas cobrando dívidas sociais do seu interesse. É uma história de extrema violência. A violência que não está presente para chocar e, sim, para tornar o relato mais realista. Até o primeiro assassinato, o cobrador parece ser mais um louco varrido que anda pelas ruas da cidade do que alguém perigoso. Mas ele mata. Muda a impressão. Ele tem ódio, um ódio que nutre assistindo televisão e que sacia matando gente rica. Ódio que se reflete nos seus poemas. O ódio que não é necessariamente a motivação de todos os que matam neste livro. Para alguns, a morte é o ofício. Em Encontro no Amazonas (III), acompanhamos um sujeito comum, viajando pela região Norte do Brasil, procurando por alguém. Ele pode ser um policial, um detetive particular, mas é um matador de aluguel. Alguém que se preocupa com o meio-ambiente, se relaciona com pessoas e que quando chega a hora vai lá e acerta um tiro no alvo. Neste conto, é interessante a crônica de viagem que o autor faz, principalmente durante uma viagem de barco pelos afluentes do rio Amazonas. Efeito parecido com o que, muitos anos depois, Patrícia Melo construiu em uma parte de seu Mundo perdido (2006), na mesma região.

Ainda sobre a morte como ofício, temos O jogo do morto (X). Alguns amigos se encontram com frequência no bar de um deles para beberem ¿cerveja? e jogarem ¿cartas? valendo dinheiro. Um dia, um deles desenvolve uma nova forma de aposta. Eles passam a apostar a quantidade de pessoas que serão mortas por um certo esquadrão. O resultado sai no jornal. O Esquadrão da Morte, O Jogo do Morto. Com o tempo, eles vão ampliando os caracteres, incluindo etnia, idade, profissão etc. das vítimas. Um deles, o Anísio, está em uma maré de azar, tem perdido a muitos jogos e tem uma mulher “gastadeira”. Ele precisa de grana. Desesperado, aposta alto: um comerciante e uma menina. Dois alvos incomuns do esquadrão. Aposta de risco. Um dos amigos topa apostar. Anísio contrata o Falso Perpétuo, cliente sorumbático do bar, um sujeito medonho, que ele desconfia ser do esquadrão, para matar um comerciante e uma menina. Ele dá o nome de um de seus amigos e o da filha deste amigo. Eles são amigos, bebem e apostam juntos. Ele dá o endereço também. Falso Perpétuo topa.

Em Mandrake (V), o melhor e o maior conto o livro, Paulo Mendes, o advogado criminalista, amplamente conhecido por Mandrake, mostra novamente sua cara. Ele já apareceu em um dos contos de Lucia McCartney (1969), livro que em breve leremos, muito em breve, espero, e apareceu em Dia dos namorados, meu conto preferido do já mencionado aqui Feliz ano novo (1975). “Cínico, inescrupuloso e competente”, Mandrake narra os eventos de sua investigação após receber a ligação de um empresário, senador e outras alcunhas que tornam o sujeito um bambambã. É. O Mandrake é reconhecido por resolver os “probleminhas” desses figurões. Depois de livrar um das garras de uma travesti, no livro anterior, a figura da vez está nas mãos de um sujeito aí, chantagista. Resumo da ópera: a ex-amante do bambambã foi assassinada, o chantagista tem uma prova que o coloca como principal suspeito. Mandrake vai lá para resolver. E descobre que o buraco é bem mais fundo do que aparenta ser. Para desenrolar este emaranhado, ele usa seus contatos, descobre uma informação aqui, outra ali. Ele se encontra até com o delegado Guedes, sabe, aquele, de Bufo & Spallanzani (1985)? Ele mesmo. E no vai-e-vem da história, Mandrake vai conversando, bebendo vinho português, bebendo muito vinho, jogando xadrez com sua namorada, se apaixonando pela filha do contratante. Este é o Mandrake. Qualquer dia ele ganha um tópico exclusivo aqui no blog. Porque ele sabe ganhar espaço. Ganhou um conto com seu nome. Depois ganhou um romance como protagonista. E foi ganhando. Teve até romance com seu nome no título. Uma figura, este Mandrake.

Agora, saímos do maior para o menor conto do livro: A caminho de Assunção (IV). A violência na esfera coletiva. É a guerra. Guerra do Paraguai. Séc. XIX. Até o Osório, figura histórica, militar de alta patente do entrevero, o chefão, comandante-chefe, aparece. Batalha de Avaí, quando ele sofre um ataque que lhe fere a face. No comando da narrativa, porém, está um ¿soldado?, vivendo sua luta para se manter vivo, entre os mortos da batalha, à caminho de Assunção, a capital do Paraguai, para a vitória, se é que há um vitorioso no final de cada guerra.

O Livro de ocorrências (VI) são três fragmentos do cotidiano de um policial: um caso de violência contra a mulher, um de atropelamento e um de suicídio. Nós não sabemos a distância de cada caso no tempo. Eles podem ter ocorridos no mesmo dia ou até mesmo em anos diferentes. O narrador somente relata. E cumpre o seu dever. Porém, é perceptível, pelo seu grau de envolvimento e pelo nível de detalhes, que do primeiro para o último caso, o seu ânimo foi decaindo progressivamente. Seria a resignação para a violência? Ou seria a possibilidade de ação no primeiro caso, que vai diminuindo no segundo e inexiste no terceiro. Ou as duas coisas. É a vida. Estes relatos compõe o segundo menor dentre os dez contos. Mas, eles são bem densos. Rubem bem poderia ter composto um livro inteiro de relatos assim. (Isso quem fez foi Roberto Bolaño, que foi um de seus seguidores não-declarados, algo evidente para nós que conhecemos a — e gostamos da — obra de ambos).

Em dois contos, eu não vi muita graça. Eles abrem espaço para pequenas fugas da realidade. O que me desagrada, contudo, não é isto. Onze de maio (VII) parece ser um conto meio distópico, sem nunca atravessar a fronteira e se declarar realmente um. Onze de maio é a data de nascimento de Rubem. Também é o nome de um asilo para idosos onde se encontram o narrador e as demais personagens desta história. Asilo e prisão. Paranoias. Televisão. Opressão. Os Irmãos controlando os internos. Sopa, comprimido, cubículo. No final, três internos revoltados com o sistema armam uma rebelião. Tem um misto de realidade e exagero. Outro conto. Em H. M. S. Cormorant em Paranaguá (XIX), o narrador é poeta, mas diferentemente daquele cobrador, ele é mais convencional. Deste conto eu não entendi muita coisa, não. É meio de época. Histórico. Os ingleses contra a escravidão. Um incidente naval. Diálogos imaginários com Lord Byron. Preciso ler mais sobre o assunto para reler este conto. Está aí o motivo de não ter visto muita graça nele, né? Um problema meu, não do conto.

Depois de dois contos narrados por poetas, temos agora como alvo um escritor de prosa. O Pierrô da caverna (II) é um crápula. Parece que não, ele pode até tentar te convencer que não. Convenhamos: um homem de cinquenta anos ou mais ser amante de uma menina de doze anos é… O pierrô da caverna liga o seu gravador e conta a sua história, ele vai falando, falando. O texto é como se fosse a transcrição do que ele fala. Um parágrafo só. Quase que de um fôlego só. Ele é divorciado de uma também escritora. Ele tem uma ¿namorada? Ele se relaciona com sua vizinha, uma mulher casada! E mãe da menina de doze, que engravida do pierrô. Pierrô por conta do título e por minha conta. Não me lembro se o nome deste palhaço aparece no conto. Palhaço é pouco. Ofende pouco. O texto lá, ditado, sem estilo, uma forma do narrador-escritor se desprender da forma, se ver mais livre para falar. A menina grávida. Situação super-delicada. O pai dela lá, com o revólver, falando para ele largar de sua filha, um alcóolatra, mal sabe ele que o escritor também pega a sua mulher e que sua filha está grávida dele. O Pierrô consegue com muito custo convencer um carniceiro a fazer um aborto na menina. Um inocente que morre. Uma inocente que corre risco por causa da… Eu peguei um ranço deste cara. Pierrô. Pedófilo. O problema é que, apesar de asqueroso, o tema deste conto é muito importante de se debater, principalmente do ponto de observação que o autor, Rubem Fonseca, coloca o leitor: a óptica do narrador. Não tem partido. É preciso conversar. E alguns assuntos não são fáceis. (Quanto mais difícil, mais necessário). Eu falei lá em cima que este livro era ainda mais imoral do que o que foi censurado, lembra?

Por fim, falemos sobre Almoço na serra no domingo de carnaval (VIII), um conto narrado por um sujeito que está à caminho de uma casa de campo, na serra, para encontrar sua namorada. Está rolando uma festinha. E ele vai se desequilibrando emocionalmente ao longo do caminho. Evento I: no caminho, uma travesti pede carona, ele recusa somente porque “pega mal” dar carona para uma travesti. Ele fica mais desequilibrado depois deste evento. Ele chega bem alterado na casa de campo. Interpreto preliminarmente que pela crise de consciência causada pelo primeiro evento. (Corte). Voltemos a cena dele chegando na casa de campo. Era a primeira vez que ele ia lá. Uma espécie de mordomo vai conduzi-lo a área de piscina, onde sua namorada está. Ele recusa, diz saber o caminho. Mas era a primeira vez que ele ia lá. E vai. Ele realmente conhece a casa. Evento II: A casa da família da namorada era a casa que esteve anteriormente em posse da sua família. Reinterpreto que sua alteração é por este motivo agora: despeito. Mais desequilíbrio. Ele trata muito mal sua namorada. É grosso. Estúpido. Ele a leva à força para um quarto. A estupra. Não fica claramente especificado, mas deduzi, de acordo com elementos da cena, que foi sexo anal. Juntando os eventos I e II, obtive uma nova interpretação. A história é complexa. Ele violenta e vai embora. Fim do conto.

Os contos de O cobrador estão comprometidos com uma realidade brutalista. Não tem concessões nem amenizações. Quase sempre é o narrador que está contando a história em primeira mão. Um narrador somente observador só se faz necessário em O jogo do morto, para acompanhar a cena até o final, quando a personagem em foco sai de cena. As outras nove histórias são relatos de personagens que participaram, de alguma forma, dos seus eventos. Não é como no jornal, é mais testemunho. Isto aproxima as coisas. O perigo bate à porta. Quem é que bate? É difícil escapar da violência. Um estupro do namorado, uma agressão do marido. Um vizinho pedófilo, um louco cobrador de dívidas sociais ou até mesmo alguém contratado especificamente para matar. Todos estão no mesmo barco, no Amazonas ou no Rio de Janeiro. No Brasil inteiro. A desatenção de um pai alcóolatra para dois problemas dentro de sua própria casa. A dívida é de quem nem mesmo sabe que deve. A ganância pelo dinheiro. A cobrança além do financeiro. O equilíbrio para transitar entre a “alta sociedade” e o povão. A coragem de um delegado em assumir o risco de denunciar um figurão. As consequências. Caberia aqui até uma frase de livro de Guimarães Rosa: “viver é muito perigoso”. Em toda e qualquer idade, da adolescência à senescência. Quando o perigo chega, Rubem Fonseca, soube, como ninguém, registrar. Registrar a chegada, a execução e o que sobrou. É a natureza da vida urbana. A feiura. E a beleza, também, quando há. Com ironia, com humor, com a verdade nua e crua. Com a elegância de um esteta. Com a naturalidade de alguém que registra o momento, com as ferramentas do momento. Um registro fundamental para se entender o antes, o agora e o depois. A cobrança de agora sou eu que te faço: leia!